Dono de um ponto de observação privilegiado e que o qualifica a entender, com muita profundidade, a dinâmica da relação entre os produtores e a adoção do Sistema Plantio Direto em sua plenitude, o pesquisador José Eloir Denardin é o entrevistado dessa edição do Boletim da FEBRAPDP. Atualmente, no cargo de Chefe Adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Trigo, ele é especialista na Área de Manejo e Conservação do Solo e da Água, atuando, desde 1976, no Centro Nacional de Pesquisa de Trigo (hoje Embrapa Trigo), localizado em Passo Fundo, RS. Denardin é um conhecedor atento tanto a realidade da pesquisa como a do produtor rural in loco, situando-se num cenário onde é bem conhecido por defender a bandeira dos três pilares do sistema, mas sem perder de vista o contexto ao qual os produtores rurais estão inseridos.
FEBRAPDP: O senhor é um importante observador sobre as questões ligadas ao SPD. Principalmente, no que diz respeito aos desafios relacionados à correta e ampla utilização do sistema em sua plenitude. Seria correto pensar que, no contexto atual, quando a sustentabilidade da agricultura brasileira, em função das polêmicas em torno das políticas ambientais, é posta em questionamento no cenário internacional, o SPD tem, em alguma medida, uma possibilidade mais favorável de ser compreendido e exercido como uma resposta a tais questionamentos?
José Denardin: É relevante perceber que boas práticas inerentes aos fundamentos do conservacionismo, da conservação do solo e da agricultura conservacionista, têm como sujeito o homem e, como agentes passivos, os elementos da biosfera. A implementação de ações conservacionistas, em escala de propriedade rural, se processa mediante o estabelecimento de relações entre o homem e os recursos naturais, associados ou não a insumos sintetizados. É desse relacionamento que o homem busca obter benefícios de natureza econômica, social e ambiental, tanto para a atual como para as futuras gerações. Assim, sustentabilidade refere-se à emergência de ambiência suprema à toda biodiversidade do Planeta, decorrente da qualidade do relacionamento estabelecido entre o homem e os elementos da biosfera. É a essa qualidade de relação entre o homem e os elementos da biosfera, com emergência de benefícios econômicos, sociais e ambientais à humanidade, que se denomina, verdadeiramente, de sustentabilidade.
Entretanto, o produtor rural é, por essência, um agente econômico e a agricultura é o tema de sua profissão. Para tal, o produtor rural necessita ter renda satisfatória. Se não for assim, desistirá da atividade. Deste modo, a análise dos determinantes financeiros e econômicos do sistema de produção que gerencia, sem dúvida, precede aos demais determinantes, inclusive aos fatores tecnológicos e agronômicos e, com ênfase, àqueles relacionados a polêmicas em torno das políticas ambientais.
Nesta linha de raciocínio, a incorporação de inovações tecnológicas está na dependência da relação custo/benefício. De outro modo, os benefícios monetizados devem superar os custos da adoção. Porém, em considerável porção das boas práticas conservacionistas, com ênfase para as plantas de cobertura, a relação custo/benefício é desconhecida ou de complexa percepção, condição esta que inibe ou inviabiliza sua adoção diante da indispensável racionalização de custos e da perspectiva de incremento de rentabilidade.
Acredito que estes fatos relativos à monetização dos benefícios esperados, principalmente daqueles gerados por tecnologias de processo, estão muito à frente da divulgação, da orientação e do incentivo à correta e ampla utilização do Sistema Plantio Direto em sua plenitude.
FEBRAPDP: Mas o senhor acredita que estejamos vivendo um momento de oportunidade para o SPD?
José Denardin: O SPD, por si só, é uma oportunidade permanente. Contudo, esta oportunidade, diante das gigantes commodities, soja e milho, que dominam a área cultivada e o mercado de grãos no País, requer do produtor conhecimento, conscientização e criatividade, uma vez que é dependente do cultivo de outras espécies sem qualquer similaridade de mercado e liquidez.
A diversificação de culturas é fundamento primordial para a adoção correta e plena do SPD. A diversificação de culturas requer o cultivo de espécies selecionadas e ordenadas no tempo e no espaço, com o intuito de promover benefícios específicos pré-estabelecidos. Porém, tanto em escala de lavoura extensiva quanto intensiva, as espécies geradoras de renda ao agricultor são poucas, relegando a intensidade da diversificação de culturas às plantas de cobertura e aos adubos verdes. Espécies para essa finalidade, em geral, dispõem de escassa oferta de sementes, preços, muitas vezes, superiores aos das espécies comerciais geradoras de renda e inexistência de informações relativas à dimensão econômica do benefício que produz.
Nesse cenário, em que o produtor rural não precifica as entradas e nem as saídas do sistema de produção que gerencia, a magnitude da rentabilidade da lavoura está limitada à minimização dos custos de produção, fato que requer quantificada a relação custo/benefício de cada insumo e de cada prática exigida em sua gestão. Portanto, o conhecimento, a conscientização e a criatividade são essenciais para tornar a adoção correta e ampla do SPD em uma real oportunidade.
FEBRAPDP: Seria a hora de intensificar tais estratégias para mais conhecimento, conscientização e criatividade?
José Denardin: A agricultura move-se pela permanente geração e adoção de tecnologia. Adotar tecnologia é manejar conhecimento. O sucesso dos estabelecimentos rurais não está na dependência da tecnologia que usa e sim em como usa a tecnologia disponível. Nesse sentido, é relevante destacar que a tecnologia indica o QUE FAZER e não o COMO FAZER. Assim, entendo que é sim oportuna e diria, até tardia, a necessidade de se estabelecer estratégias com foco, muito além da conscientização, voltado à FORMAÇÃO de usuários, para interpretarem, com mais precisão, a “inundação” de INFORMAÇÃO que flui, incessantemente no setor do agro.
FEBRAPDP: Como o senhor lida diretamente com os produtores e conhece de perto as suas resistências a essa adoção do sistema, como entende que seria a melhor estratégia para dar mais aderência à proposta do Plantio Direto pleno junto aos agricultores? Em outras palavras, qual a melhor maneira de convencê-los?
José Denardin: A gestão de sistemas agrícolas produtivos é indissociável dos determinantes econômicos e financeiros que à mantém integrada às cadeias produtivas de que é componente. O conhecimento íntegro da tecnologia aplicada ao sistema de produção, para o qual foi desenvolvida, com ênfase à manutenção satisfatória da relação entre custo de produção e produtividade, que se constitui na rentabilidade do sistema, é que determina sua adoção.
As tecnologias de produto, oriundas do setor industrial privado, naturalmente produzem esses conhecimentos e os integram ao processo comercial, como fator de persuasão do agricultor a adquiri-las. As tecnologias de processo, por sua vez, com ênfase àquelas de cunho conservacionista, quando desvinculadas de qualquer tecnologia de produto, normalmente são geradas em instituições públicas, com foco em aspectos sociais e ambientais e desprovidas da quantificação econômica dos benefícios delas esperados. O equivocado entendimento de que os impactos social e ambiental são suficientes para persuadir e convencer o produtor rural a incorporá-las ao seu sistema de produção é, sem dúvida, causa relevante da baixa adoção das mesmas, restringindo-se aos produtores rurais de maior consciência conservacionista. É necessário demonstrar para o produtor rural o real impacto econômico relacionado a cada prática conservacionista disponibilizada.
FEBRAPDP: Numa entrevista em 2016, o senhor fala que a viabilidade econômica, principalmente por conta da pouca ou nenhuma rotação de culturas, era o maior desafio a ser vencido. Ainda o é?
José Denardin: Estabelecer sistemas de produção com diversificação de culturas foi e continua sendo o maior desafio para a correta e ampla adoção do SPD, bem como para a manutenção da fertilidade do solo. As espécies destinadas à geração de renda direta para o produtor rural, tanto em escala de lavoura extensiva quanto intensiva, com exclusividade à produção de grãos e fibra, são limitadas. Assim, restam apenas oportunidades para o cultivo de plantas de cobertura ou adubos verdes, para a promoção de benefícios indiretos ao sistema agrícola produtivo, os quais, em alta frequência, não são explícitos, inibindo sua adoção – na visão econômica do produtor rural, o pousio se apresenta como mais interessante. Essa percepção pode explicar em parte, segundo dados adaptados da CONAB (2020), a ocorrência de, aproximadamente, 62% da área cultivada com espécies anuais no Brasil receber apenas uma safra por ano. Em outras palavras, isto significa afirmar que apenas 40% da área cultivada na safra de verão é cultivada na safra de inverno.
FEBRAPDP: O senhor acredita que a pressão internacional pode influenciar favoravelmente no contexto da adoção mais plena do SPD a ponto de superar essa “barreira financeira”, ou essa mudança viria apenas da consolidação de uma consciência sustentável real que ainda está para acontecer na mente do produtor de um modo, digamos, mais automático e sólido?
José Denardin: Acredito que a adoção plena do SPD está na dependência de opções econômicas para a ocupação do solo na safra de inverno, seja pelo cultivo de espécies produtoras de grãos ou fibra, seja pela implementação de sistemas integrados, como, por exemplo, a Integração Lavoura Pecuária ou até mesmo a Integração Lavoura Pecuária Floresta, para os quais há inúmeras espécies vegetais disponíveis para estruturar modelos de produção diversificados.
FEBRAPDP: É muito recorrente encontrar entrevistas do senhor sobre os desafios do SPD. O que mais o preocupa quando olha para o cenário dos últimos anos e, no sentido contrário, o que mais o motiva a levantar essa bandeira com tanta insistência?
José Denardin: Os recorrentes posicionamentos que tenho veiculado em referência aos desafios do SPD são decorrentes do SPD ser ainda adotado, em larga escala, reunindo apenas dois preceitos da agricultura conservacionista – mobilização de solo restrita à linha de semeadura e manutenção dos restos culturais sobre o solo –, aplicado ao cultivo recorrente de soja em sucessão a espécies de inverno ou ao pousio invernal, com produção de raiz e palha aquém da demanda biológica do solo e uso de corretivos e fertilizantes na superfície do solo.
O SPD, assim adotado, tem gerado degradação biológica, física e química do solo e, por estar dissociado de práticas para o manejo de enxurrada, culmina com a ocorrência de erosão hídrica, propiciando perdas de água, solo, matéria orgânica, corretivos, fertilizantes, nutrientes e, até mesmo, remoção de frações expressivas da camada superficial do solo. As demais consequências técnicas desse processo de degradação têm gerado: desestabilização estrutural do solo; dispersão de argila; eluviação de argila da camada superficial para a camada subsuperficial do solo; obstrução da porosidade do solo; adensamento do solo; redução dos fluxos de água, ar, calor e nutrientes no perfil do solo; elevação da resistência do solo à penetração de raízes; estratificação de indicadores químicos da fertilidade do solo na camada de 0-20 cm de profundidade; aumento da frequência de calagem, seja pela imobilidade do calcário da superfície para a subsuperfície do solo, seja pela perda do calcário por erosão ou pela ineficácia do calcário na neutralização da acidez do solo; redução da eficácia dos fertilizantes; limitação à maximização da produtividade da lavoura em anos com distribuição normal de chuvas; e aumento da frequência de perda de produtividade da lavoura por déficit hídrico, em curtos períodos sem chuva. Em termos econômicos, o SPD, assim praticado, tem contribuído para elevar os custos de produção, estagnar a produtividade e a rentabilidade da lavoura, colocando em risco o retorno econômico dos investimentos requeridos pela incessante modernização da agricultura e, com ênfase, o abastecimento de matéria prima às inúmeras cadeias agroalimentares. De modo efetivo, os problemas gerados pelo SPD, dissociado da diversificação de culturas, promotora da fertilidade do solo, estão condensados no adensamento do solo e na estratificação de indicadores químicos da fertilidade do solo, com ênfase na camada de 0-20 cm de profundidade.
O que mais me motiva a levantar esta bandeira com tanta insistência e veemência, é perceber o risco que essas constatações impõem ao agro brasileiro. Produtores rurais brasileiros, tanto da região tropical quanto da região subtropical do Brasil, vêm demonstrando, ano após ano, potencial de produtividade de soja da ordem de 130 sacas/ha, mas a média brasileira é de apenas 53 sacas/ha, isto é, 41% da produtividade já experimentada em escala de propriedade rural.
Dados de pesquisa, gerados ao longo dos últimos oito anos agrícolas, demonstram que apenas a diversificação de culturas, com adição de restos culturais acima de 10 t/ha/ano, tem sido capaz de assegurar 16 sacas/ha de soja acima da produtividade obtida com soja seguida por pousio invernal.
Por certo, o produtor rural quer manejar corretamente o SPD, mas há aspectos econômicos no manejo do sistema de produção que impedem ou dificultam tal decisão.